No próximo dia 30 de novembro, a bailarina, figura da Resistência e militante antirracista Joséphine Baker acrescerá essa lista tornando-se a primeira mulher negra a ser intronizada no majestoso monumento. É de se comemorar. No entanto, um certo amargor me veio à boca à medida que fui lendo essa notícia nos portais nacionais. Segundo o diário Paris-Match, a aprovação da entrada de Joséphine no Panteão foi unanimemente aprovada pelo conjunto da classe política francesa, aprovação essa baseada nos tuítes de políticos de partidos tais quais o PCF (Partido Comunista), o RN (partido de extrema-direita), assim como o PS (Partido Socialista) e o LREM (partido governista de centro-direita).
Na realidade, a decisão do Presidente Macron de aceitar a intronização de Joséphine Baker até reacendeu algumas polêmicas que evocarei a seguir. Mas antes disso, gostaria de propor uma reflexão: qual é a carga simbólica contida na intronização de Baker como sendo a primeira mulher negra honrosamente sepultada na necrópole que acolhe aqueles e aquelas que marcaram a história do país?
Joséphine Baker nasceu no estado de Missouri, nos Estados Unidos, em 1906. Ela era filha de artistas e desde criança precisou alternar entre as aulas e o trabalho doméstico para ajudar nas despesas de casa. Casou-se pela primeira vez aos 13 anos mas o casamento durou pouco tempo e depois da separação Joséphine integrou um trio de artistas enquanto dançarina. Depois de ter viajado pela Filadélfia com essa trupe itinerante e ter estreado no mundo do music-hall na Broadway aos 16 anos, ela embarca para a França a convite de Caroline Reagan, esposa de um adido da embaixada americana em Paris. Nesse momento de grande efervescência ao redor do art nègre Reagan pretende montar o espetáculo La Revue Nègre, cuja estrela será Joséphine.
O espetáculo é um sucesso e a imagem de Joséphine Baker dançando charleston seminua, portando apenas um cinturão de bananas e plumas torna-se icônica. Sua carreira deslancha e no auge dos movimentos fauvista e cubista ela torna-se uma musa amplamente reconhecida na cena artística francesa.
No início dos anos 30, Joséphine volta aos Estados-Unidos com o intuito de levar a sua arte até o seu país natal. No entanto, por causa do segregacionismo vigente, a artista sofre diversos ataques e é alvo de preconceito até mesmo nas casas de show em que tenta se produzir. Desiludida e profundamente magoada, volta para a França onde, segundo ela, pode ser livre e reconhecida apesar dos problemas raciais enfrentados também pela sociedade francesa.
Desde os primórdios da Segunda Guerra Mundial Joséphine participa de atividades de contra-espionagem por conta das forças armadas francesas. Ela era então casada com Jean Lion, um francês judeu, o que lhe permite adquirir a nacionalidade francesa. Graças ao seu engajamento e sua participação estratégica durante a guerra, Joséphine foi condecorada com cinco medalhas de honra sendo uma delas a Légion d'Honneur.
Depois da guerra, Joséphine Baker passa a encarnar o papel de embaixadora da alta-costura francesa. O país, empobrecido pela guerra, não tinha recursos para promover sua moda e Joséphine, amiga próxima de Christian Dior e Balmain passa a exibir as peças que ambos confeccionavam especialmente para ela.
Joséphine nunca escondeu seu engajamento na causa antirracista. Fez-se porta-voz na Europa da indignação provocada pelo assassinato de Emmet Till em 1955 e sempre esteve próxima dos movimentos de defesa dos direitos cívicos e da luta pela emancipação e igualdade da população negra. Frequentou personalidades como Martin Luther King Jr. e Marcus Garvey, e participou da Harlem Rennaissance.
A artista, militante e resistente faleceu em 1975 e sua sepultura atualmente se encontra em Mônaco, onde ficará até o traslado.
A entrada de Joséphine Baker no Panteão foi anunciada pelo presidente Macron no último dia 22 de agosto, após a petição online Osez Joséphine ! ter alcançado mais de 37000 votos. Segundo Laurent Kupferman que criou a petição em maio desse ano: "Nós precisamos nos unir. E ela encarna esse universalismo à francesa, que não tem evidentemente nada a ver com fechamento identitário". Segundo o mesmo, "Joséphine Baker atende a todos os quesitos para entrar no Panteão. Mulher de cor (sic) nascida americana e apaixonadamente francesa, resistente e militante em prol dos direitos civicos".
A colocação não deixa dúvidas. Joséphine Baker merece estar no Panteão por ter abraçado plenamente a cultura e o patriotismo francês, sendo a prova maior desse engajamento o seu papel ao lado dos Resistentes da Segunda Guerra Mundial. Quando se trata de render-lhe homenagens e expressar a aprovação da decisão presidencial, a atuação no combate ao racismo - aquele problema de americanos segregacionistas lá longe, é pormenorizado. A insistência no fato dela ser uma "mulher de cor", triste eufemismo usado por todos aqueles a quem a palavra "negra" ainda fere a boca, deixa um gosto amargo de token. Pior, insiste na ideia confortante mas já ultrapassada de que na França, país idealmente igualitário, não há racismo pois a nação é una e todos nascem iguais. O famoso "universalismo à francesa" referido por Kupfman, e que consiste em repetir das mais variadas maneiras que ok, talvez aqui tenha um pouco de preconceito, mas olha como nos Estados-Unidos é pior, tão horrivel que os americanos "de cor" vinham refugiar-se aqui para fugir da segregação institucional...
Além disso, Joséphine não conseguiu nem saborear seu momento de glória a sós, pois sua entrada no Panteão trouxe de volta a polêmica questão da (ainda não) intronização de Gisèle Halimi, advogada e figura importante do feminismo abertamente posicionada contra a Guerra da Argélia, falecida em 2020. Nada contra Halimi, muito pelo contrário. Só lamento que as manchetes, ao invés de exibirem "Viva Joséphine!", entoam "Que massa, Joséphine! Mas então, o que estávamos falando sobre a Gisèle mesmo..."
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